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A idolatria do aspecto

    Somos seres de certezas apressadas. Criamos certezas apressadas sobre nós mesmos, sobre situações, sobre as pessoas e julgamos tudo rápido demais; o que é um dos motivos da instabilidade das emoções. Parte disso surge de um instinto de sobrevivência que nos ajuda nos momentos onde precisamos agir e pensar rápido, mas quando esses mesmos padrões de reações automáticas são ativados para lidar com situações que não envolvam real perigo iminente, eles nos prejudicam. A relação consigo mesmo, com os outros e a maneira como interpretamos tudo o que nos ocorre poderia ser experimentada de uma forma mais realista, leve e sã se lembrássemos sempre de que há muita coisa que não sabemos. Mas muita coisa mesmo! Teríamos muito mais paz de espírito se exercitássemos a humildade a ponto de parar para analisar melhor e com calma quais as possibilidades de significado da circunstância diante de nós; se déssemos mais atenção aos vários aspectos e perspectivas daquilo que nos preocupa antes de nos prendermos tão orgulhosamente, obsessivamente e tão rapidamente à interpretação aparentemente mais relevante ou mais automática sobre qualquer coisa que seja.

    Esta prisão, esta certeza apressada, é o que chamo de “Idolatria do aspecto”. Quando nossas percepções afetam negativamente nossas emoções distorcendo a realidade sobre as circunstâncias, sobre nós mesmos e sobre os outros, estamos idolatrando algum aspecto. Idolatrar um aspecto é selecionar apenas uma perspectiva ou suposto fato da situação e tratar isto como se fosse um Deus, de modo que ficamos como cegos e surdos para outros fatos que envolvem a realidade da situação, sequestrados emocionalmente por uma perspectiva sobre nós, alguém ou uma situação. Por exemplo, quando consideramos apenas um aspecto negativo de nossa personalidade e sofremos com isso, nos esquecendo de todas as outras realidades sobre nós mesmos e passamos a acreditar que somos nossa autoimagem. Ou quando somos injustiçados e só conseguimos encontrar o aspecto negativo do que nos aconteceu. Ou quando estamos preocupados com o bem-estar de alguém que amamos e só conseguimos olhar para o pior lado da situação de aparente risco. Ou quando alguém nos olha estranho e somos afetados pela ideia que achamos que fizeram de nós, pensando que não gostaram de nós. Às vezes a idolatria do aspecto também é relacionada a um aspecto positivo de nós mesmos e acabamos caindo em vanglória, soberba e orgulho. Também ocorre quando esquecemos de analisar melhor aquilo que aparentemente é bom e tomamos decisões irrefletidas iludidos por um forte desejo. Tudo isso é idolatria do aspecto.

    Superando a idolatria do aspecto

    A idolatria do aspecto começa a ser vencida quando finalmente percebemos que há muita coisa que não sabemos sobre tudo. E isso se dá, em parte, pela tomada de consciência da própria estrutura da realidade, por exemplo: quando olhamos a superfície de uma mesa, não conseguimos olhar, ao mesmo tempo, a parte inferior da mesa. Quando estamos pensando determinada coisa, não conseguimos, ao mesmo tempo, pensar sobre outra coisa, ou seja, saber sobre algo em um determinado tempo, significa necessariamente não estar totalmente ciente de uma infinidade de outras coisas relevantes. Isto significa que durante toda a vida experimentamos um estado de ignorância contínuo sobre muitos fatos. Então vencemos a idolatria do aspecto refletindo no seguinte:

    “Certo, estou vendo este aspecto da situação. Mas há uma enorme quantidade de coisas que desconheço, que são reais e que podem ser extremamente relevantes”.

    Basicamente nós encontramos mais paz interior quando tomamos consciência do nosso estado de ignorância. Viver consciente desse estado de ignorância é libertador. Nisto nós aceitamos a nossa condição humana de não-saber de forma que quando um aspecto se apresenta ele não tem mais tanto impacto sobre nossas emoções.

    Conforme vamos enfrentando cada situação neste estado consciente de nossa ignorância, neste estado de humildade intelectual, neste saber que não sabemos inúmeras coisas, aos poucos paramos de ser tomados por certezas apressadas; aos poucos deixamos de idolatrar a perspectiva percebida. Aos poucos desenvolvemos aquele descanso e silêncio interior que confia no único que tem o poder de saber todas as coisas e pensar todas as coisas ao mesmo tempo: Deus. Dele vem a verdadeira segurança. Nós não sabemos, mas Ele sabe. Pela consciência do estado de não-saber, a mente e o corpo passam a responder com menor velocidade ao que captamos do mundo, causando um sentimento de bem-estar psicológico, emocional e paz interior.

    Existem outros benefícios que aparecem quando paramos de idolatrar o aspecto desenvolvendo a consciência contínua de nosso estado humano de não-saber: melhora das relações interpessoais, melhora da comunicação, aumento da criatividade, redução da ansiedade, alívio de medos, diminuição do estresse, aumento da capacidade de aprendizado, desenvolvimento da inteligência emocional e intelectual.